1. A estabilidade do sistema financeiro e instituições financeiras sólidas condicionam o crescimento e o desenvolvimento económico e social.

    O grau de interligação entre o sector financeiro, a economia e a sociedade explica porque é que a saúde dos bancos é imprescindível. Os Bancos são, em boa verdade, o coração da economia, que necessita que o crédito seja “bombado” com facilidade, com “conta, peso e medida”.

    Sabemos que, na Europa, o sistema bancário é responsável por cerca de 3/4 do financiamento da economia, quase três vezes mais do que nos EUA, onde as securitizações e o mercado de capitais ocupam posição relevante.

    Importa, pois, garantir um sistema bancário forte, moderno e confiável, ao serviço dos cidadãos e da economia, o que significa bancos:

     a) bem capitalizados

     b) com balanços que reflictam a realidade patrimonial com rigor

     c) acesso a funding em condições de normalidade

     d) gestão rigorosa do risco e dos (activos ponderados pelo risco)

     e) rentabilidades atractivas para investidores e stakeholders

     f) capacidade de desenvolvimento e inovação tecnológica

     g) boa governação

     h) relação de confiança e amigável (“trustful”) com os clientes, através de boas práticas e de transparência 

    E isto exige uma boa regulação, definida e implementada também com muito bom senso, avaliando cuidadosamente os impactos e consequências, bem como uma supervisão eficaz.

  2. A crise financeira económica 2008-2009, iniciada nos EUA, obrigou a intervenções massivas dos Estados de apoio a instituições financeiras, à adopção de medidas de estímulo à economia, à necessidade de revisão do quadro regulatório e ao reforço da supervisão (prudencial e comportamental) e da monitorização dos bancos.

    As medidas tomadas ao nível da regulamentação e de supervisão do sector financeiro pretendem colmatar as falhas que foram detectadas a vários níveis:

    • da resiliência e da resolvabilidade das instituições
    • da arquitectura e da qualidade da supervisão
    • da governação das instituições
    • das boas práticas bancárias

  3. Em 2010, com o despoletar da crise da dívida soberana europeia, a fragmentação financeira da Europa intensifica-se fortemente.

    A fragmentação existente e a diferença de situação dos Estados Membros evidencia-se a nível da avaliação do risco soberano entre os Estados Membros da União Europeia: no 1º trimestre de 2013, entre os 10 países do Mundo com melhor rating, de menor risco soberano, estavam 8 europeus, mas entre os 10 países com maior risco de crédito soberano estavam 4 do Eurosistema.

    O aumento das dificuldades sentidas pelos países mais afectados, mesmo com os respectivos sistemas bancários consideravelmente resilientes, como foi o caso do nosso, acabaram por se traduzir no downgrade do respectivo rating e decorrente falta de acesso aos mercados.

    Simultaneamente, o aumento das dificuldades sentidas por esses países no acesso aos mercados para o seu próprio financiamento conduziu a que recorressem às instituições de crédito domésticas para aí colocarem a sua dívida soberana. Neste contexto, a situação dos respectivos sistemas bancários viu-se agravada pela perda de valor em balanço dos activos por eles detidos de dívida soberana, com consequente impacto na solvabilidade.

    A interconexão de riscos surge num cenário de fragmentação, quer dos processos de supervisão conduzida a nível nacional, quer das normas que os norteiam, originando graus diferentes de rigor e de transparência de análise.

    Neste novo contexto, surge a necessidade de reforçar o quadro de regulação e supervisão já iniciado, designadamente

    • criar regras prudenciais uniformes
    • adoptar os mesmos critérios de supervisão em todos os Estados Membros
    • criar legislação adequada para fazer face a uma recuperação ou liquidação expedita de instituições financeiras, minimizando os custos para os contribuintes

    Centenas de novas medidas regulatórias foram já tomadas e outras estão em desenvolvimento, em particular as que se relacionam com

    - a Directiva e o Regulamento de Requisitos de Capital, em vigor desde 1 de Janeiro de 2014, que constituiu a transposição das Recomendações do Comité de Basileia, conhecidas por Basileia III;

    - a definição de novos requisitos de liquidez, de curto (LCR) e longo prazo (NSFR);

    - a definição de um rácio de leverage;

    Entretanto, a iniciativa de criação da União Bancária, com os seus três Pilares – Mecanismo Único de Supervisão, Mecanismo Único de Resolução e um Sistema Único de Garantia de Depósitos, surge como resposta à interconexão entre o risco soberano e o risco das instituições de crédito, que põe em causa a concorrência no mercado bancário que se quer integrado, prejudicando as instituições financeiras localizadas em Estados Membros mais vulneráveis, quer pela via da falta de acesso aos mercados internacionais, quer pelo aumento do custo de financiamento, os quais, por sua vez, se reflectem no aumento dos custos gerais de financiamento ao sector empresarial e à economia, globalmente.

    Como exemplo da fragmentação:

    Em Dezembro de 2013, as taxas de juro médias dos novos empréstimos a Sociedades Não Financeiras eram, em Portugal, 5,08%, na Alemanha, 2,19% e as do stock de crédito, de 4,35% e de 3,17%, respectivamente.

  4. Muito e bom trabalho foi feito, no entanto, há aspectos preocupantes em toda esta vaga de alterações que se pode comparar a um tsunami regulamentar, a que devemos acrescer as profundas alterações tecnológicas, comportamentais e de governo das sociedades, que vão conduzindo à necessidade de ajustar os modelos de negócio dos bancos.

    Um primeiro aspecto muito preocupante é a possibilidade de estar a ocorrer um processo de                       sobre-regulamentação na Europa, ou demasiada velocidade de implementação, com consequências directas a pelo menos quatro níveis:

    • Em primeiro lugar, é incerto qual será o impacto conjugado de todas estas alterações. [E o facto de ocorrerem simultaneamente, e não de uma forma faseada, dificultará qualquer processo de diagnóstico ou de eventual correcção de medidas.]
    • Em segundo lugar, poderão levantar-se ou agravar-se questões de level playing field entre os bancos europeus e de outras jurisdições. O último relatório do Comité de Basileia sobre o grau de implementação das suas recomendações data de Setembro de 2013, indica que países tão importantes comos os EUA e a Rússia ainda não implementaram as revisões de Basileia II nem de Basileia 2.5, ao passo que na Europa estamos a começará já a implementar Basileia III.
    • Em terceiro lugar, tem havido um acréscimo muito significativo ao nível das obrigatoriedades de reporte, com impactos muito significativos em termos de tempo, de recursos humanos e de recursos financeiros dos bancos.
      Por outro lado, a elevada quantidade de temas colocados à consulta pública, muitas vezes em sobreposição e com prazos de resposta muito curtos, não favorecendo uma maturação adequada dos mesmos nem uma discussão aprofundada.
    • Em quarto lugar, é duvidosa a capacidade de muitos bancos para absorver e pôr em prática tantas, tão complexas e exigentes medidas em prazos muitas vezes impraticáveis.

    A este propósito, permito-me referir a intervenção, numa conferência do European Savings and Retail Banking Group em 30 de Outubro de 2013, de Jacques de Larosière (ex Governador do Banco de França), precisamente o líder do High Level Goup on Financial Supervision in the EU, que delineou as linhas gerais do novo quadro regulatório num Relatório publicado em Fevereiro de 2009.

    Subordina-se ao título “A WORD OF WARNING: BANKING REGULATION IS ABOUT TO CREATE PRO-CYCLICAL DAMAGE”.

    É um texto que merece a mais profunda atenção, de que destaco as seguintes notas:

    - A taxa anual bruta do stock de crédito às SNF é crescentemente negativa desde 2012, reflectindo não só a desalavancagem que sucede sempre a um boom de crédito e a um contexto recessivo da economia, mas também a responsabilidade da regulação.

    Esta última conduziu os bancos da Zona Euro a aumentar significativamente os seus fundos próprios (620 Bi € entre Janeiro de 2009 e Julho de 2013), o que foi acompanhado por uma redução massiva dos balanços dos bancos, que registou uma diminuição de 9% entre Maio 2008 e Julho 2013: é um facto que, numa envolvente em que o capital é escasso e difícil de obter, é necessário diminuir o denominador dos seus rácios de capital, i.e., os seus activos (nomeadamente o crédito) e o respectivo risco.

    A pressão para aplicação de Basileia III, que poderá ter um phasing in até 2019, criou o problema, e no preciso momento em que a economia europeia está em recessão.

    A queda dos novos empréstimos às PME é preocupante, designadamente nos países como a Irlanda, Espanha e também Portugal; em Espanha, os novos créditos as PME caíram de 21 Bi€/mês no início de 2010 para 8,5 Bi€ em Agosto de 2013 (números do BCE).

    - Também o novo Rácio de Liquidez (Liquidity Coverage Ratio), a introduzir em Janeiro de 2015, será muito duro para alguns bancos europeus. Estima-se uma insuficiência de 400 Bi € com data de 31 de Dezembro de 2012. E, de acordo com a EBA, os requisitos de liquidez a longo prazo deverão originar uma muito grande insuficiência de funding estável, o que afectará o investimento de longo prazo.

    - O “leverage ratio” de Basileia III (3%) atingirá muitos bancos: um estudo muito recente mostra que 46% dos bancos de uma amostra significativa não conseguirá cumprir o objectivo e terão de reduzir, outra vez, os seus balanços.

    - Vivemos num paradoxo: por um lado, os bancos centrais estão a criar liquidez abundante; por outro lado, fazem com que o crédito bancário se torne mais difícil por causa da regulação. É fundamental que esta regulação seja devidamente calibrada e bem pensada nos seus calendários e períodos de transição.

    Um segundo aspecto que causa alguns receios tem a ver com a especificidade das situações, económica e financeira, que alguns países intervencionados vivem actualmente

    - não deveriam ser tomadas em conta as situações de enorme desvantagem competitiva em que vão funcionando? E se sim como?

    Por fim, é de mencionar que o sucesso de uma União Bancária dependerá da implementação e bom funcionamento dos seus três pilares. Ora, apenas, e até ao momento, só está garantido o funcionamento pleno do Mecanismo Único de Supervisão. O Mecanismo Único de Resolução enfrenta dificuldades de consenso a nível das autoridades europeias e o Sistema Único de Garantia de Depósitos não tem perspectiva em vista.

  5. O sistema bancário europeu vem pois actuando:

    - com este complexo e pesado enquadramento regulatório;

    - com uma envolvente de baixos crescimento e taxas de juro, e uma política monetária acomodatícia;

    - com níveis de rentabilidade muito baixos: repare-se que o ROE da banca europeia caiu de 16,1% em 2005 para 7,8% em 2008 e 3,1% em 2012 (nos EUA estes números foram 17,8%, -1,6% e 11,6%). Pode perguntar-se: até que ponto são os bancos europeus interessantes para os investidores? A rentabilidade está já em recuperação, mas não voltará aos níveis do passado.

  6. No que respeita aos bancos portugueses, importa referir os seguintes flashes:

     a) Demonstraram grande resiliência durante a crise 2009-2010, sendo um dos sectores bancários europeus que menos recursos públicos requereu do Estado então, e apenas em termos de garantias, e não foi afectado por produtos tóxicos nem prosseguiu produtos especulativos;

     b) Apoiaram as necessidades de financiamento do Estado quando os mercados começaram a recusá-lo – foi vítima da crise soberana, que contaminou os seus ratings, e não responsável pela crise (os casos BPN e BPP tiveram outras origens);

     c) Tiveram de cumprir requisitos de capital prudencial mais rigorosos do que os seus pares em outros países europeus devido ao programa de ajustamento.

     d) A falta de acesso aos mercados internacionais e a queda brutal das cotações das suas acções (a capitalização bolsista reduziu-se em cerca de 90% de 2007 até 31 de Dezembro de 2011) afastou investidores e alguns bancos tiveram, então, de recorrer ao Estado para aumentar o capital, (como aliás, o próprio Programa de Ajustamento previu). Todavia pagam remunerações altíssimas pelos CoCo’s, que renderam ao Estado mais de 450 M€ em 2013 – o contributo dos contribuintes tem uma remuneração bem acima das eventuais alternativas de aplicação;

     e) Mesmo com avultados prejuízos em 2011, 2012 e 2013, a taxa efectiva de imposto superou sempre os 25%. Adicionalmente pagam uma contribuição anual para o Estado bem como para um Fundo de Resolução.

     f) Realizaram uma desalavancagem exemplar, atingindo em 2013 o objectivo indicativo previsto para fim de 2014, com uma redução do crédito às empresas de 12% entre 2011 e 2013;

     g) Os resultados dos bancos foram fortemente penalizados pela crise económica (incumprimento, imparidades e provisões), pelo muito baixo valor do indexante     das taxas de juro (a Euribor caiu de 5,2% em 2008 para 0,3% agora, com a taxa REFI a cair de 4,25% para 0,25%) provocando uma drástica diminuição das margens financeiras dos bancos, e ainda, pelo custo do funding e do capital.  Assim, o ROE dos bancos caiu de +17,7% em 2007 para -6,3% em 2011 e -7,8% em 2013; faço notar que o sector bancário vem transferindo para as famílias, via crédito à habitação, significativos rendimentos, que acabam por actuar como amortecedor social.

     h) Têm vindo a satisfazer os novos requisitos da regulação e da supervisão, incluindo a comportamental.

     i) Apesar de virem trabalhando com significativas desvantagens competitivas (face aos seus pares europeus), os bancos encontram-se agora numa situação de liquidez razoavelmente confortável apresentam os maiores rácios de capital de sempre (o que lhes tem permitido absorver os prejuízos), foram profundamente escrutinados pelo regulador, a aversão ao risco vem diminuindo e os bancos estão apetentes de conceder crédito a empresas e projectos que obedeçam a critérios de avaliação de risco aceitáveis (até para melhorar a sua rentabilidade), e as taxas de juro do crédito novo estão já a descer.

    O seu maior problema, a rentabilidade, que ainda deverá ser globalmente negativa em 2014, já poderá sair do vermelho em 2015, se a situação económica for melhorando, ainda que, com o actual valor da Euribor, a margem financeira continue sob fortíssima pressão.

  7. O crescimento económico vai depender do investimento, do bom aproveitamento da capacidade produtiva existente, da melhoria do balanço de muitas empresas, que lhes facilitará a concessão de crédito. Investimento, crédito e recapitalização de empresas são factores chave para sustentar o crescimento económico.

    A União Bancária em construção dará, sem dúvida, algum contributo para retomar a integração financeira e melhorar as condições de crédito à economia.

 

Fernando Faria de Oliveira,
Presidente da Associação Portuguesa de Bancos
Lisboa - Assembleia da República - Sala do Senado, 26 de Fevereiro de 2014